A EDUCAÇÃO DO SER POÉTICO, por Carlos Drummond de Andrade
(Transcrito do Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro - RJ, 20.07.74)
Por que motivo
as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo? Será a
poesia um estado de infância relacionada com a necessidade de jogo, a ausência
de conhecimento livresco, a despreocupação com os mandamentos práticos de viver
– estado de pureza da mente, em suma? Acho que é um pouco de tudo isso, se ela
encontra expressão cândida na meninice, pode expandir-se pelo tempo afora,
conciliada com a experiência, o senso crítico, a consciência estética dos que
compõem ou absorvem poesia. Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa
comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra
instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que
vai fenecendo, à proporção que o estudo Sistemático se desenvolve, até
desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida? Receio que
sim. A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem, sem,
via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da
linguagem. A escola não repara em seu ser poético, não o atende em sua
capacidade de viver poeticamente o conhecimento e o mundo. Sei que se consome
poesia nas salas de aula, que se decoram versos e se estimulam pequenas
declamadoras, mas será isso cultivar o núcleo poético da pessoa humana? Oh,
afastem, por favor, a suspeita de que estou acalentando a intenção criminosa de
formar milhões de poetinhas nos bancos da escola maternal e do curso primário. Não
pretendo nada disto, e acho mesmo que o uso da escrita poética na idade adulta
costuma degenerar em abuso que nada tem a ver com a poesia. Fazem-se demasiados
versos vazios daquela centelha que distingue uma linha de poesia, de uma linha
de prosa, ambas preenchidas com palavras da mesma língua, da mesma época, do
mesmo grupo cultural, mas tão diferentes. Se há inflação de poetas
significantes, faltam amadores de poesia – e amar a poesia é forma de
praticá-la, recriando-a. O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes
pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão direta das coisas e,
depois, como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno
o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com
a sensibilidade poética. Não seria talvez despropositado cuidar de uma extensão
poética das escolinhas de arte, esta ideia maravilhosa que Augusto Rodrigues
tirou de sua formação humana de artista para a realidade brasileira. Longe de
ser uma fábrica alarmante de versejadores infantis, essa extensão, curso ou
atividade autônoma, ou que nome lhe coubesse, daria à criança condições de
expressar sua maneira de ver e curtir a relação poética entre o ser e as
coisas. Projeto de educação para a poesia (fala-se hoje em educação artística
no ensino médio, quando o mais razoável seria dizer educação pela arte). A
vocação poética teria aí uma largada franca, as experiências criativas gozariam
de clima favorável sem que tal importasse na obrigação de alcançar resultados
concretos mensuráveis em nível escolar. Sei de casos em que um engenheiro, por
exemplo, aos 30, 40 anos, descobre a existência da poesia… Não poderia tê-la
descoberto mais cedo, encontrando-a em si mesmo, quando ela se manifestava em
brinquedos, improvisações aparentemente absurdas, rabiscos, achados verbais,
exclamações, gestos gratuitos? Alguma coisa que se bolasse nesse sentido, no
campo da Educação, valeria como corretivo prévio da aridez com que se costuma
transcrever os destinos profissionais, murados na especialização, na ignorância
do prazer estético, na tristeza de encarar a vida como dever pontilhado de
tédio. E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em
mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa
palavra, se chama felicidade?
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